Envolver-se, sem se absorver

Envolver-se, sem se absorver - Análise do Livro "O Alienista" de Machado de Assis, Envolver-se, sem se absorver, Goeie Life

(Análise do Livro “O Alienista” de Machado de Assis, por Mariah May)

Dentre as leituras profundas, as utilitárias e as de puro entretenimento lúdico, está o livro “O Alienista”, de Machado de Assis (1839-1908), narrativa literária capaz de arrancar boas risadas de quem se habilite à sua leitura e releitura.

O livro de apenas 36 páginas (na versão em PDF do site Domínio Público (1) foi escrito pelo romancista-realista brasileiro em 1882, quando o psiquiatra neurologista austríaco Sigmund Freud (1856 – 1939) ainda estava bebendo nas fontes do saber que o levariam a estabelecer a inquestionável revolução que foi para o mundo o surgimento da Psicanálise.

Considerado um dos maiores críticos brasileiros e fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis esbanja sua visão analítica da sociedade da época, não só a brasileira, mas também a europeia, e “O Alienista” surge como um arauto do que estava na ordem do dia no Século 19 em matéria de ciência e da medicina.

Não se tem conhecimento de alguma aproximação existente do escritor brasileiro com o Pai da Psicanálise, o médico de Viena, contudo, a obra literária do primeiro parece ter sido construída esmeradamente atenta às profundas discussões daquele século em relação às doenças mentais, os métodos de tratamento e os padrões estabelecidos para todas as doenças, dentre elas, a loucura.

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Um Machado de Assis bastante freudiano

Machado enveredou por uma narrativa prazerosamente humorística, de fina ironia, visível sagacidade e genial esmero literário, para levar aos seus leitores um debate contemporâneo sobre a problemática do que era – e ainda é – normal e anormal, bem como dos comportamentos sociais, culturais e mesmo econômicos da época.

Criando uma Via-Láctea de personagens neuróticos, psicóticos e outros perversos (no sentido psicanalítico freudiano), Machado mostra, através da narrativa de “O Alienista”, que a normalidade nem sempre é aquilo que a ciência determina, de forma absoluta – debate esse presente na própria fundamentação da Psicanálise.

Para o Pai do modelo topográfico do psiquismo humano (que põe em evidência a existência e proatividade do inconsciente), as neuroses são resultado de tentativas ineficazes de lidar com conflitos e traumas inconscientes. Logo, para Freud, a maioria das pessoas é neurótica, tendo que lidar (e estabelecer defesas) com ideias insuportáveis para seu Eu.

Freud afirma ainda que a psicose seria resultado do conflito do Eu e a realidade. Ela se apresenta de modo mais intenso que a neurose e é incapacitante.

Assim que, em “O Alienista”, são apresentados personagens fictícios (será?) que parecem ícones dessas categorias e suas variações. Se não, vejamos alguns deles.

O protagonista principal (neste balaio literário machadiano todos são protagonistas, vitimando e se vitimando nos delírios de suas subjetividades e psiquismos confusos) é um bem formado médico psiquiatra da alta sociedade carioca, nascido na pequena Vila do Itaguaí. Para o jovem Dr. Simão Bacamarte, recém-chegado da Europa, a ciência era verdade única a ser seguida e para ela, vivia, estudava e colocava em prática seu profundo conhecimento.

Tal qual a ciência daquele século, Simão era rígido e rigoroso nos seus preceitos científicos. Ou seja, um forte candidato de uma paranoia ou uma mania de grandeza.

Sua paixão sincera pela ciência e seu desejo de buscar cura para o sofrimento dos outros o levou a se tornar um renomado psiquiatra, tanto no Brasil como lá fora, com inquestionável diploma conquistado nas melhores universidades da Europa.

Naquele tempo, era imensa a honra para uma família que tivesse um filho estudado no estrangeiro. Dissemos filho, pois, para uma filha, bastava o papel de ser prendada nos pontos do bordado e nas notas do piano de cauda instalado nos imensos salões domésticos, ser mimosa e tratar de casar-se antes das 15 primaveras, para não ficar mal falada!

Ao retornar da Europa já famoso, Simão Bacamarte contraiu matrimônio com Dona Evarista, viúva de 26 anos, e, na visão científica dele, detentora das características ideais para lhe dar filhos robustos e inteligentes – diga-se de passagem e quem já leu o romance sabe, não aconteceu.

Quase 1 bilhão de pessoas com transtornos mentais em todo o mundo

Qualquer semelhança é mera coincidência. Ou não. Tal qual a psiquiatria do Século 19 e anteriores, que apontava a histeria como doença física e feminina causada pelo útero da mulher, Dr. Bacamarte também acreditou que poderia curar a infertilidade de sua esposa tratando-lhe as condições (de saúde) mentais.

Daí é que o homem da psiquiatria decide instituir, na provinciana do Itaguaí, um hospício padrão Europa a que deu o nome de Casa Verde e cuja inauguração e funcionamento alterou profundamente e para sempre a vida cotidiana dos cidadãos do lugar.

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Do rigor e miopia do obcecado tratamento imposto para o que era considerada doença da mente, na Itaguaí, não escapou nem o padre Lopes, nem o prestamista Costa, nem o barbeiro e tampouco a companheira do tão bem intencionado homem da medicina.

O Padre foi internado por ter muitas virtudes (aquilo não era normal) e teve alta após a façanha de traduzir obras do grego e do hebraico, sem nada saber das duas línguas! O prestamista só poderia estar mesmo louco, pois havia perdido toda a fortuna que herdou emprestando dinheiro sem conseguir cobrar seus devedores.

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O barbeiro, bom, esse era doído pelo poder, luta para mudar as coisas e quando consegue a oportunidade (após a revolta), faz com que tudo fique como está.

E Dona Evarista, com profunda melancolia, chega a ter uma crise de insônia sem conseguir decidir qual roupa usaria numa festa.

Não somente esses infelizes aqui citados, onde nada menos que 75% da polução da cidade foi tida como louca. Bastava um ato repetidamente praticado, como o simples ir à janela sempre no mesmo horário para ver passar alguém especificamente já era motivo para se levar a sério um tratamento.

Em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase 1 bilhão de pessoas viviam com transtorno mental. Desafios globais como desigualdade social, pandemia de Covid-19, guerra e crise climática são ameaças à saúde global. Segundo o estudo, depressão e a ansiedade aumentaram mais de 25% apenas no primeiro ano da pandemia.

Todos temos algo reprimido e guardado em segredo dentro de nós

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Para a Psicanálise, todo ser humano sofre, de alguma forma, em maior ou menor grau, de problemas psíquicos, se levarmos em consideração que todo ser humano reprime alguma realidade, em algum momento da sua infância.

Fato é que, Simão Bacamarte, de tão obstinado a encontrar cura de cada caso de loucura por ele diagnosticado, em sua imersão no contexto da loucura, não percebeu que o excessivo grau de apego à ciência e à razão já era claro sinal de uma obsessão.

Ao que parece, mesmo com sua grande bagagem profissional, o Simão da ficção de Machado descuidou-se da autoanálise, do observar-se a si mesmo, enquanto profissional de saúde que atende ao outro – o paciente.

Envolvido e absorvido, quando dá por si, já vai em larga escala sua psicose paranoica, com uma elevada mania de grandeza. Convencido de que ninguém, em toda Casa Verde e aos arredores, tinha personalidade perfeita, exceto ele próprio, o alienista conclui ser o único tipo anormal.

Nada mais por fazer, o alienista de Itaguaí decide esvaziar o hospício que idealizou e trancar-se ele próprio ali dentro, sozinho, em busca da cura de si mesmo, saindo de lá alguns meses depois, já um corpo sem vida, já não havendo nada que temer ou combater.

E a cidade pôde seguir seu curso normal de vida.

Guardado o lenço das lágrimas por Dr. Simão, cessando-se as salvas de palma ao magistral escritor Machado de Assis, resta a reflexão: com toda a sua grande formação e arcabouço científico, não estava Simão preparado para imergir no universo dos transtornos e dos delírios de seus pacientes sem se envolver e se dissolver neles?

Sabemos que, no entusiasmo da condição de aprendiz, na prática da Psicanálise Clínica, é possível uma desestruturação – ou aprisionamento – do próprio analista feita pelo analisando psicótico, por exemplo, em caso de domínio insuficiente do conhecimento e do método psicanalista, mas também do próprio autoconhecimento, incluindo nisso, as limitações conscientes – e até inconscientes.


Notas para este artigo:
(1) O livro “O Alienista”, no formato PDF pode ser baixado no enderenço: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=1939
(2) Em seus últimos dias, Machado de Assis morreu com uma úlcera cancerosa na boca, provavelmente derivada de seus diversos tiques nervosos, e que lhe impedia de ingerir qualquer alimento sólido. (Wikipédia, “Machado de Assis”)


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Sobre o(a) autor(a)

Psicoterapeuta, comunicadora e produtora de conteúdo para redes sociais, autodescoberta em TEA, abraçou a terapia pela palavra para somar psicanálise clínica e comunicação à missão de facilitar processos de autoconhecimento, autodescoberta e autocuidado, que resultam em formas mais saudáveis de tornarem a vida mais plena e significante.

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