Antigordofobia em perspectiva decolonial

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Quando bebê, eu era a menina que tinha bochechas fofinhas. Na infância, o espelho começou a me mostrar o meu corpo gordo, e os adultos diziam “– Você tá muito gordinha, heim?!”. Já adolescente, fugia do espelho e das pessoas, mas algumas – geralmente desconhecidas, na rua – faziam questão de me abordar para dizerem que eu deveria emagrecer, pois tinha um rosto lindo. Nesses momentos, eu só entendia o não-dito: seu corpo é horroroso. Inconscientemente, passei a não querer andar sozinha e, quando o fazia, estava sempre com algum livro à mão para não ser incomodada. Adulta, mantive uma postura mais reclusa, envolta nos livros e estudos, que me levaram à pesquisa acadêmica: da licenciatura a, agora, o doutorado. Em todo esse tempo, vivi uma transição entre ser a gorda apontada/reconhecida pela sociedade e o olhar no espelho para, enfim, reconhecer em mim a mulher gorda que sou.

Dentre todas as experiências sociais nas quais me impuseram o rótulo de gorda, uma me marcou mais profundamente. Por volta dos meus doze anos, um episódio definitivamente me impossibilitou de negar o inevitável: era/sou gorda. Eu e minha mãe estávamos saindo de um supermercado no centro de Ilhéus (BA), e, enquanto aguardávamos meu pai, observei que alguns garotos/adolescentes, que faziam carrego na porta do estabelecimento, olhavam para mim, gesticulavam e riam. Demorou um curto intervalo de tempo até eu entender que um deles gritava: “– Meu não, o filho da gorda não é meu, eu não comi a gorda”. Gritavam, riam, apontavam uns para os outros “culpando” aquele que tinha “comido a gorda”. Me recordo de ver meu pai muito nervoso partir para cima deles, exigindo que me respeitassem, e a confusão foi instaurada.

Meus pais me tiraram do local e, no carro, na volta para casa, eu perguntei o que era “comer” alguém. Até então, eu era uma criança/pré-adolescente que não entendia os duplos sentidos desse verbo. Ainda nervosos com a situação, eles apenas me disseram que esquecesse aquilo tudo que havia sido dito, que não lembrasse do ocorrido. Não esqueci. Passaram-se mais de 20 anos e, volta e meia, ouço ecoar a voz que diz meu não, o filho da gorda não é meu, eu não comi a gorda. Não tenho filhos, nem pretendo tê-los, porém, essa voz representa justamente a solidão e a abjeção reservadas aos corpos gordos. Ela é a expressão de um preconceito – a gordofobia – que atinge, em maior ou menor grau, a todas as pessoas que são gordas.

Gordofobia é uma palavra ainda não inserida no Dicionário VOLPI – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, mas que já faz parte de discussões que ocorrem no Brasil[i] em relação à pessoa gorda e ao viver/estar em sociedade. De modo geral, significa fobia, aversão e/ou preconceito a pessoas gordas, as quais, em razão de sua aparência corporal, não se encontram dentro de um padrão pré-estabelecido esteticamente de magreza, quanto a determinado modelo de corpo tido como ideal. Ainda há, no país, muita incompreensão quanto à gordofobia ou, mesmo, nem sequer há um entendimento sobre os significados deste termo, visto que uma parcela da sociedade, endossada inclusive pelo atual presidente da República, tende a desconsiderar a gordofobia e tratá-la como “mimimi” ou “romantização da obesidade”.

Em live oficial, no dia 10 de setembro de 2020, Jair Bolsonaro, ao realizar uma “brincadeira” com uma criança, disse que se um urso comesse uma pessoa gorda, adoeceria com tanta gordura. Essa visão, além de fortalecer a gordofobia, apresenta o corpo gordo como doente e “apodrecido”, que causaria mal até mesmo a animais selvagens. Em outros momentos, o presidente associou homens gordos a “maricas”, numa clara manifestação gordofóbica e homofóbica, ao dizer que “gordinhos estão se tornando maricas” porque não pode mais chamar de gordinho, já que “tudo agora é bullying”. Igualmente, em sua pré-candidatura à presidência, ao relatar sobre sua visita a uma comunidade quilombola, ele foi gordofóbico e racista ao afirmar: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais.”[iv] Com essa fala, demonstra não apenas racismo, mas também a animalização de corpos negros gordos, além de retirar das pessoas gordas a sua sexualidade, o exercício do prazer e do desejo, reforçando estereotipias e estigmatizações sobre gordas/os/es.

Perspectiva similar a essa foi utilizada recentemente numa esquete do grupo Porta dos Fundos, quando, em um vídeo com o tema testes de Covid-19, uma atendente de laboratório ligava para um paciente que havia realizado o teste no dia anterior naquele estabelecimento. O homem era interpretado pelo ator Fábio de Luca, que é gordo, e, na cena, afirmava que sua alimentação consistia em salgadinho Fofura e refrigerante Fanta quente, além de ser sedentário e fumante. A atendente diz que o homem não está com Covid-19, pois “o vírus não conseguiu resistir ao corpo podre” dele. Ela o associa ao sedentarismo – “é do tipo que não abaixa nem para amarrar um cadarço”; bem como diz que ele deve ser aquele que só vive se masturbando (nesse caso, indica que não tem uma vida sexual ativa). Diante do quadro, que inclui ainda um câncer de próstata expelido pela urina, pois nem o câncer suportou aquele corpo, a personagem decreta que o caso é grave e vai transferir diretamente a ligação para a Organização Mundial de Saúde (OMS). Nesse momento, a atendente demonstra preocupação e o homem continua esparramado no sofá comendo um pacote de salgadinhos, o que reforça noções de desleixo, descuido, de que não se importa com a sua saúde.[v]

Essa visão pejorativa é baseada na domesticação dos corpos, nas opressões estéticas e, sobretudo, num discurso biomédico patologizante que considera toda pessoa gorda como doente. Dessa forma, as pessoas gordas são constantemente retratadas como desleixadas, descuidadas, feias, repulsivas, descontroladas, animalizadas, compulsivas por comidas gordurosas, sem direito ao exercício de sua sexualidade. Tudo isso se dá em função do estigma que recai sobre corpos gordos e interfere diretamente na construção de uma vivência em sociedade, pois são constantemente rejeitados. Nesse sentido, o preconceito contra pessoas gordas se traduz em impeditivos que restringem sua aceitação social, a inserção no mercado de trabalho e a mobilidade delas.

Tais impeditivos impulsionam a estigmatização, a visão pejorativa de que são pessoas feias, preguiçosas, que se alimentam mal e, por isso, “merecem” o espaço da abjeção social, numa alusão ao termo usado por Judith Butler[vi]. Mais do que uma pressão estética, por todo o estigma que comporta e pela ojeriza ao corpo gordo, essa discriminação, em sua forma mais contundente, pode paralisar a vida da pessoa e, em última instância, até mesmo levá-la ao suicídio. Em razão disso, entendo que não se trata apenas de uma questão estética, relacionada somente à aparência, mas sim de um conjunto de fatores sociais (gênero, sexualidade, acesso, mobilidade, educação, entre outros) e estéticos, o que me conduz ao uso do termo socioestético, no intuito de sublinhar que a gordofobia suscita temáticas que unem a pressão estética à opressão social.

Infelizmente, sob o signo da colonialidade, a cultura, em suas diversas formas de manifestação, tem auxiliado a fundamentar e a disseminar a gordofobia. Contudo, essa visão preconceituosa vem sendo debatida, discutida também a partir de diversos segmentos culturais e, assim, a luta antigordofobia está se constituindo no e a partir do campo cultural, tendo presença mais forte com perfis de ativistas antigordofobia ou influenciadores digitais. Desses, posso citar Estudos do corpo gordo (@estudosdocorpogordo), Naiana Ribeiro (@itsnaiana), Ju Romano (@ju_romano), Vai ter gorda (@vaitergorda) e Hello Biello (@hellobiello). Em minhas pesquisas, identifico o processo de desenvolvimento da luta antigordofobia como movimentos decoloniais em territórios de saberes e poderes colonizados, tendo por base uma expressão de Aníbal Quijano[vii]. Especificamente, trata-se de assumir posturas que questionam colonialidades de saberes e poderes em busca de ressignificar o corpo gordo em termos particulares e coletivos.

Particular porque reconhecer-se e assumir-se como gorda/o/e não é um processo fácil e exige todo um trabalho direcionado ao desenvolvimento da autoestima daquelas/es que são constante e cotidianamente violentadas/os/es em sua dignidade de pessoa humana. Por sua vez, coletivo porque enfrentar a gordofobia não se resume somente à autoaceitação corporal, ao contrário, é muito mais amplo e complexo do que isso. Não basta simplesmente a pessoa se autoaceitar como gorda e os problemas estarão resolvidos. Não venham querer impor que a pessoa gorda deve ter autoestima elevada, se, a todo o tempo, a sociedade rechaça e ridiculariza o corpo gordo; se, em meio a uma pandemia, a sociedade normaliza discursos de que só morrerão gordos e velhos – ou seja, estes são inúteis e podem morrer.

Ter autoestima exige, diretamente, a decolonização de saberes e poderes quanto às corporalidades gordas, desde a atribuição de respeito às vivências de pessoas gordas à despatologização desses corpos. Trata-se, ainda, de entender que o corpo gordo não é público – isto é, não deve ser controlado pelo Estado ou pelos padrões sociais – e que, tal como qualquer sujeito magro, também tem o direito ao exercício do desejo, da sexualidade, das performances dissonantes, do reconhecimento de beleza de tais corpos e da concepção de que ser gorda/o/e é apenas uma característica como qualquer outra.

Aquela voz que ainda me acompanha, conforme relatei no início, expressa justamente a negação da sexualidade, dos desejos e a não ocupação de espaços e performances desejantes. Muitas vezes, nem nós mesmas – pessoas gordas – olhamos para corpos também gordos com um olhar de afeto, de desejo, de tesão. Ainda mais quando tais corpos são gordos maiores[viii] e/ou negros, por exemplo, pois a gordofobia age em entrecruzamento com outras problemáticas sociais, como racismo, gênero e condição socioeconômica, dentre outras. Integrar os movimentos de decolonização das colonialidades às quais estamos submetidas/os/es exige, portanto, uma dupla consciência de quem somos: colonizados fraturados pela decolonização de saberes e poderes, conforme postulado pela feminista decolonial María Lugones[ix].

Para Nelson Maldonado-Torres, o compromisso decolonial “encontra suas raízes nos projetos insurgentes que resistem, questionam e buscam mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder”[x]. Desse modo, o nosso autorreconhecimento como corpos gordos fruto de uma colonização nos permite rasurar e resistir aos saberes e poderes colonizados, a partir de uma perspectiva decolonial. Em termos práticos, isso contribui para a afirmação particular de que sim, somos gordas/os/es. Ao mesmo tempo, em termos coletivos, possibilita o reconhecimento desse outro não mais sob o signo do estigma, mas sim a partir da concepção de que ter um corpo magro não dá a ninguém o direito de se sentir melhor que ou de desrespeitar as pessoas gordas. Amplia, nesse sentido, o entendimento de que é possível e necessário contribuir para a luta antigordofobia.

A ressignificação de nossos corpos gordos inclui a expressão de nossas corporalidades, em subjetividades e performances, como sujeitos revestidos de beleza e tanto desejados quanto desejantes. Ser um corpo gordo decolonial permite contribuir para uma rede de afetos e sociabilidades que trazem para o centro das relações as pessoas gordas em diálogo com corpos igualmente gordos. Isso fortifica a luta antigordofobia, amplia saberes, decoloniza poderes e, principalmente, permite a naturalização e inserção das/os/es gordas/os/es nos círculos em que tais corpos desejarem entrar, reescrevendo outras narrativas possíveis a partir das experiências e reescritas de pessoas gordas. Isso é, também, resistir e lutar por espaços democráticos de saber e poder na sociedade. E o meu desejo é que aquela velha voz que me acompanha soe cada vez menos, porque outras vozes – gordas, decoloniais, dissonantes como eu – se farão ouvir ainda mais altas e imponentes.

Leila Cunha Raposo é mulher, gorda e feminista. Um corpo decolonial em território de saberes e poderes colonizados. Pesquisadora, doutoranda (PPGL/UESC), mestra em Letras. Bolsista Fapesb num país que desvaloriza a educação e a ciência.

Leila Raposo

[i] Quanto a pesquisas que envolvem discussões sobre gordofobia, indico duas teses: O peso e a mídia: uma autoetnografia da gordofobia sob o olhar da complexidade, de Agnes de Souza Arruda (2019), direcionada ao campo da Comunicação (UNIP); e Lute como uma gorda: gordofobia, resistências eativismos, de Maria Luiza Jimenez-Jimenez, mais conhecida como Malu Jimenez (2020), na área de Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT).

[iv] Consulta disponível em: https://bityli.com/xSriN. Acesso em: 11 nov. 2020.

[v] O vídeo trouxe repercussão social acusando a gordofobia no esquete, sobretudo a partir do Twitter e do Instagram, levando o grupo a ocultar o vídeo do ar. As cenas foram regravadas, desta vez com um ator magro, como forma de indicar que não havia a intenção da gordofobia, e está disponível em: https://bityli.com/Hkz80. Resta, entretanto, questionar: por que, então, desde o início não foi gravado por um ator magro e sim a primeira escolha foi por um ator gordo?

[vi] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2010.

[vii] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Cultura y Conocimiento en América Latina. Anuário Mariateguiano, Lima, Amatua, v. 9, n. 9, 1997.

[viii] Gordo maior é uma expressão utilizada, no conjunto da militância gorda, para referir-se à pessoa que é mais gorda e, que, portanto, está ainda mais distante de determinados padrões corporais socioestéticos. Por sua vez, a que mais se aproxima de tais padrões é identificada como gorda menor.

[ix] LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, set./dez. 2014.

[x] MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 75-97, 2016.


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